Lisistrata/ Pesquisa Teatral

domingo, 22 de agosto de 2010

Stanislavski e a construção da personagem

O conceito de criação da personagem reconhece que todos seres humanos são diferentes. Como nunca encontraremos duas pessoas iguais na vida, também nunca encontraremos duas personagens idênticas. Aquilo que faz suas diferenças faz delas personagens. O público que vai ao teatro tem o direito de ver Treplev (personagem de A Gaivota, de Tchekov) hoje e Hamlet na semana seguinte, e não o mesmo ator com sua própria personalidade e seus próprios maneirismo. Embora possam ser desempenhados pelo mesmo ator, são dois homens distintos com suas personalidades e caracteristicas próprias. Mas não se pode vestir uma personagem do mesmo jeito que se veste um figurino. A criação do personagem é um processo.

O ator precisa de uma perspectiva sobre o papel: o que ele pensa sobre a personagem e o que ele quer dizer através dela. Mas, para fazer isso, é importante lembrar que a personagem também tem sua própria perspectiva, a ótica através da qual ela percebe o seu mundo. Ao longo da peça, a personagem passa pelas duas horas mais importante de sua vida, enfrenta problemas que nunca enfrentou antes e faz coisas que nunca fez. E, portanto, muitas vezes não tem uma maneira habitual de agir. Por isso, a personagem é capaz de supreeender e até, as vezes, ser contraditória. Nenhum personagem é completo, mesmo os heróis gregos tinham suas falhas trágicas. Modernamente, a dramartugia nos oferece pais exemplares que se apaixonam perdidamente por travestis. O primeiro contato do ator com a personagem se dá por intermédio do seu problema humano. Esta relação entre a situação objetiva da personagem e a íntima necessidade pessoal de transformá-la, cria  uma síntese dos lados objetivo e subjetivo da personagem. A ação torna visível a vida interna e cria uma base para a experiência vivenciada. Esta síntese leva a uma visão artística do papel onde a expressão externa não esta separada do seu conteúdo da experiência humana. Os objetivos a serem atingidos orientam a personagem ao longo da peça. A cada instante a personagem reavalia sua situação perante seu objetivo e disso surge a necessidade de agir.

É comum identificar o lado psicológico (a vida interna) da personagem com as suas emoções. Na verdade, Stanislavski, elaborador do sistema para o ator, se preocupou durante toda a sua vida artística com o problema da criação da experiência verdadeira. Ele entendeu que as emoções não estão sujeitas a nossa vontade, e sim ao resultado de um processo de vida. Elas não podem ser atingidas diretamentes. A ação é o indicador mais preciso da personagem. É inútil elaborar como a personagem vai agir sem saber qual ação que vai fazer.

Por ação entendemos uma ato que envolve o ser humano inteiro na tentativa de atingir um objetivo especifico. Na ação orgânica o desejo, pensamento, vontade, sentimento e corpo estão unidos. De fato, o homem inteiro participa da ação, por isso sua importância na criação da personagem. Agimos a partir de nossas percepções. Elas e nossas ações expressam quem somos nós. Percebemos, avaliamos e depois agimos. O interior, que é invisivel, se torna externo, visível e artístico através da ação. "A lógica dos pensamentos gera a lógica das ações, que gera a lógica das emoções".

A personagem se diferencia do ator de duas formas distintas, ambas relacionadas com a ação. Como individuos somo capazes de empreender uma grande variedade de ações. A personagem ameaça e o ator também pode ameaçar. A personagem consola, mas o ator também o faz. Mas o que difencia o ator da personagem não são as ações simples, individualmente (ameaçar, consolar, desejar, etc), mas a "ação complexa" - no conjunto dessas ações simples que está dirigida a um objetivo, único, provido de coerência e lógica próprias.
Trabalhando e experimentando esta coerência ou lógica de ações que não pertencem ao ator e sim a personagem, o ator começa a entrar no fluxo de vida da personagem.

Ao longo de uma peça, a personagem é capaz de realizar um número significante de ações que constituem uma linha que atravessa todo o texto. A linha continua de ações é a linha consecutiva de ações de uma personagem que o ator desenvolve a fim de reforçar a lógica e sequência de seu comportamento no papel. Serve-lhe da mesma forma que uma partitura serve ao pianista, dando ao seu desempenho unidade, ordem e perspectiva.
Um conceito básico de criação da personagem: ela existe a partir de sua lógica de ações.
Criar a linha continua de ações de uma personagem com sua lógica de ações envolve o ator com sua mente, alma e corpo juntos, numa pesquisa psicofisica.

A personagem se diferencia do ator no que diz respeito à lógica de ações e no que diz respeito à maneira de agir. Além da linha contínua das ações com sua coerência própria, o ator também se preocupa com as caracteristicas da personagem. A composição de hábitos de comportamento é chamada de caracterização. Muitos atores encaram seu trabalho como o descobrimento do gestual particular da personagem. O problema da caracterização tem duas vertentes. O ser humano existe como individuo e como integrante de um grupo social. Dar individualidade e agregar caracteristicas que situem a personagem a seus respectivos grupos sociais.
As classes sociais, as profissões, as faixas etárias, demonstram comportamento compartilhado que é imediatamente reconhecivel. O comportamento humano também muda de país para país e de época para época.

Os atores de A Gaivota, que retrata várias camadas da sociedade russa do final do século XIX precisam ser sensíveis ao fato de que suas personagens se apropriem dos padrões de comportamento de um outro país e de uma outra época. Também, dentro dessa sociedade, as pessoas estão separadas pelas classes, funções sociais, uma ampla pesquisa é nescessária para qualquer peça que fuja de nossa época atual. Mas precisamos ficar atentos a observações superficiais e tentação de criar verdades absolutas. É verdade que militares, em geral, compartilham características próprias que os diferem dos surfistas, por exemplo, mas nem todos militares são, e pode mesmo haver um militar/surfista. O que quero dizer é que há muitas personagens pertecentes a quadros muitos característicos, mas que fogem às características mais marcante de seus quadros.

Dentro dos grupos, cada ser humano é um índividuo com suas características próprias. E o que as determinam como características individuais, ou melhor dizendo, como modos de comportamento são peculiaridades interessante, como andar diferente, por exemplo, ou um andar desleixado, ou falar monótono e agudo, uma risada estridente, etc. Enfim, características que se somem em um individuo e que componham sua personalidade. É evidente que suas manifestações externas devem estar associadas as realidades internas e mais profundas da personagem.

Na descoberta de uma lógica de ação única e indispensável, o ator percebe que a personagem demonstra certas tendências de ação. Por exemplo: Treplev explode quase todas as cenas, mas ao invés de reconhecermos nele unicamente um personagem explosivo, devemos estar atentos para os motivos que o levam a explodir. É preciso lembrar que o tempo da peça é o tempo em que a vida da personagem está no limite. Questionando os fatos que o levam a perder a cabeça, temos um primeiro passo para estabelecer uma fisicalidade da personagem. Temos base de sua composição física, temos como fazer. Ao adaptar seu corpo a situação em que se encontra a personagem, o ator começa a compor seu papel.

Finalmente, o que vai distinguir a personagem do ator é a forma como a ação da personagem é executada. Hamlet vai inevitavelmente ameaçar de forma diferente da que faria o ator, pois, além do fato de cada ser humano ser único e a personagem ser um ser humano, para caracterizar o ator precisa recompor seu próprio comportamento. Para fazer isso, sem cair na imitação fácil, é necessário transformar os componentes da ação interna e externa que são suscetíveis ao nosso controle: ação física, estado físico, tempo e ritmo, monólogo interior, pensamentos. Este processo se estende pelo período de ensaios e temporadas, e até depois. É comum um ator inexperiente e mesmo experiente rejeitarem novos modos de agir - é mais cômodo apostar na naturalidade, no espontâneo e mesmo nos clichês para compor as personagens porque compor uma personagem meticulosamente, passo a passo, rejeitando diversas tentativas até encontrar um caminho satisfatório é tarefa árdua. A descoberta de uma ação psicofísica única e indispensável da personagem, que o sintetize, significa também em certa medida, a "morte" do ator e sua "reencarnação" dentro da personagem, e isso gera medo e nem sempre é desejado pelos atores.

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