Por: Arnaldo Moraes Godoy
O presente artigo tem por objetivo identificar a presença da mulher no direito grego clássico, valendo-se de fontes literárias, vinculando direito e literatura. Primeira leitura sugere mulheres fortes, dominantes, donas da mais absoluta liderança. Teríamos Aspásia (na vida real), Medéia, Lisístrata e Antígona (na ficção teatral). Sintetizam exceções, fatos isolados, ensaios de igualdade num mundo de homens, que negaram às mulheres a mais variada gama de direitos. As mulheres não participavam da política, atividade que os gregos mais teriam prezado.
Aspásia, a mais famosa cortesã da antigüidade, vivera com Péricles, líder ateniense, no século V a.C. . O matrimônio fora dificultado pela proibição do casamento entre atenienses e estrangeiros. Segundo Mário Attilio Levi, biógrafo de Péricles:
“Depois de um casamento mal sucedido e que acabou em divórcio, ele se uniu a Aspásia, mulher de grande cultura e elevada educação, natural de Samos, a quem não podia desposar porque os matrimônios com mulheres daquela ilha não estavam entre os que eram consentidos entre atenienses e estrangeiros. Aspásia, mesmo não passando de um concubina, sonha granjear-lhe muitas amizades no meio intelectual.”
O biógrafo de Péricles, a propósito de Aspásia, traça características da difícil vida das mulheres de Atenas :
“A moral ainda corrente na Atenas do século V não tornara agradável a vida da mulher no casamento, pelo menos entre as camadas elevadas. A mulher dessa condição não recebia a mesma educação que era ministrada ao marido e, enquanto a mulher do povo não guardava distâncias em relação a seu cônjuge e participava de suas atividades, a da aristocracia tinha de viver no gineceu, isolada dos homens da casa, e pouco saindo.”
A historiografia tradicional sempre reservou a Aspásia posição incômoda. Embora bonita, culta, inteligente, Aspásia é a “outra”, a “hetaira”, a “cortesã”. Ainda segundo Mário Attilio Levi:
“Aspásia era de Mileto, filha de Axíoco, e tinha a educação e os costumes das mulheres da cidade Jônia, onde a condição feminina era bastante diferente da das atenienses.”
Aspásia representa exceção na história grega. Seu nome chega até nós por causa de vida em comum com Péricles, que eclipsou a política ateniense na época clássica. Tratemos agora de Medéia, Lisístrata e Antígona, evidenciadas em peças teatrais. O teatro grego era espaço político, orientado para a formação cívica, com papel ideológico próximo ao dos espetáculos contemporâneos de massa, como o cinema. Possibilitava ambiente de catarse coletiva. Ria-se com as comédias, e rindo castigam-se os costumes. Chorava-se com as tragédias; e a dor alheia diminuía a dor de cada um.
O espaço ocupado pelo teatro lembra-nos um ouvido, e a semelhança caracteriza as qualidades acústicas do ambiente. Às mulheres era vedado a representação. Máscaras diferenciavam os caracteres, no que toca à idade, ao sexo. Na altura dos lábios as máscaras tinham espécie de corneta, por onde o som passava e era potencializado. É conhecida mais tarde pelo latim “per sonare”, origem de riquíssima representação semântica, que varia de pessoa a personagem, personalidade. Marcantes as tragédias. De acordo com a helenista francesa Jacqueline de Romilly, “a tragédia grega é um gênero à parte que não se confunde com nenhuma das formas adotadas pelo teatro moderno” . Ainda, segundo a mesma autora, “(...) a tragédia grega apresentava, uma linguagem diretamente acessível da emoção, uma reflexão sobre o homem” . Segundo T.B.L. Webster, “os gregos eram acostumados a ver as coisas em níveis diferentes, aparência heróica e emoções humanas, a mesma estória na tragédia e na comédia” .
Medéia é tragédia de Eurípedes estreada em 431 a.C..A intensidade das interrogações em Medéia é muito maior do que a segurança das respostas. Medéia é arquétipo da mulher abandonada, humilhada, tomada de fúria, vingativa. Todos os males decorrentes do abandono de seu homem abateram-se sobre ela, que não consegue racionalizar sua circunstância. Medéia é a mulher decaída, rebaixada. Jasão abandona Medéia, dela cansado, preparando-se para casar-se com a filha do rei de Corinto. Segundo Paul Harvey, “a deserção e a ingratidão do homem amado despertam o lado selvagem de Medéia, e seu rancor é ostensivo” . Medéia mata os filhos que tivera de Jasão, fugindo para Atenas, onde obtivera asilo do rei Egeu. Segundo Mário da Gama Kury, tradutor da peça para o português:
“A tônica de Medéia é o ódio sobre humano em que se transforma o amor da heroína por Jasão, quando este a repudiou para casar-se com a filha do rei da região que os acolhera. (...) A peça evolui de uma Medéia abatida pelo repúdio do marido, esposa traída que definhava no leito e nem sequer levantava as pálpebras para abrir os olhos, aparentemente conformada com a sorte, para uma mulher animada por um terrível desejo de vingança e extermínio, que não se detinha diante do infanticídio, como vindita extrema para o aniquilamento completo do marido perjuro.”
É uma Medéia desesperada que despede-se do marido traidor: “Vai logo embora! Estás ansioso por rever a tua nova amante e contas os momentos desperdiçados longe do palácio dela. Corre! Vai consumar depressa o casamento, pois se os deuses me ouvirem tuas reais bodas serão de tal maneira estranhas que nem tu hás de querer a noiva para tua esposa!”
Arrependida, implora pela volta do amado desertor: “Imploro, Jasão! Peço-te perdão por tudo que já te disse; deves ser compreensivo em meus momentos de exasperação, depois das provas incontáveis de paixão recíproca!”
Decidida, Medéia faz dos filhos instrumento de vingança: “Faltam-me forças para contemplar meus filhos. Sucumbo à minha desventura. Sim, lamento o crime que vou praticar, porém maior do que minha vontade é o poder do ódio, causa de enormes males para nós, mortais!”
A decisão é irrevogável, adapta-se a concepção de destino que Medéia concebe: “Não volto atrás em minhas decisões, amigos; sem perder tempo matarei minhas crianças e fugirei daqui. (...) De qualquer modo eles devem morrer e, se é inevitável, eu mesma, que os dei à luz, os matarei.”
A reação de Jasão centra-se na culpa de Medéia, fazendo com que o ouvinte da peça diminua a atuação pretérita do marido errante: “Monstro! Mulher de todas a mais odiada por mim e pelos deuses, pela humanidade! Tiveste a incrível ousadia de matar tuas crianças com um punhal, tu, que lhes deste a vida, e também me atingiste mortalmente ao me privar dos filhos!”
Saudoso dos filhos chora o marido emigrado: “Ah! Lábios adoráveis de meus filhos tão infelizes! Quero acariciá-los!...”
E com a razão da mãe abandonada, conclui Medéia:
“Hoje lhes falas, queres afagá-los; até pouco nem os procuravas.”
Medéia simboliza a mulher abandonada que encarna os problemas de todos os homens. A tradição ocidental pretende esquecer-se da traição de Jasão, centrando a tragédia no ato criminoso de Medéia. A heroína matara os filhos e por isso o leitor corre a incriminá-la. Porém a gênese da catástrofe vincula-se na traição de Jasão, gerador do infortúnio, protagonista intelectual do desastre. Não se trata de defender-se Medéia, cercando-a de todas as possíveis excludentes de criminalidade ou circunstâncias mitigadoras da pena. Muito menos apressada página de vitimologia, fundamentada em Heitor Piedade Júnior, denunciando a vítima, como responsável pelos eventos danosos. Mas há indisfarçável relação de causa e efeito. A traição dera início a toda a ira, a comportamento irracional que redundava na morte das crianças, seres elevados a categoria de eternas vítimas, do escorço bíblico das pragas do Egito, ao não menos evangélico episódio de Herodes, à cruzada medieval das crianças, aos massacres da Guerra do Paraguai, denunciados por Júlio Chiavenatto. Trata-se de delatar a peça como resultado de entendimento de mundo que reputa ao macho o vigoroso, o robusto, o forte, o varonil, o valente, o corajoso, o destemido, reservando à mulher o fraco, o raquítico, o tímido, o medroso. Nem que esse medo seja a fórmula da coragem da mulher que matou os filhos. Medéia inaugura galeria de mulheres humilhadas. Nós tentamos protegê-las. Os gregos culpavam-nas pela ousadia do protesto.
Fala-se agora de Lisístrata, ateniense que chefiara greve de sexo, deliciosa comédia de Aristófanes, poeta cômico que passara a infância na ilha de Égina. Segundo Mário da Gama Kury:
“Cansadas de uma guerra que já durava 20 anos, as mulheres de Atenas, de Esparta, da Beócia e de Corinto (cidades gregas mais duramente atingidas pela luta), chefiadas pela ateniense Lisístrata, decidiram pôr fim às hostilidades usando de uma tática pouco ortodoxa: uma greve de sexo.”
A peça estreou na primavera de 411 a.C. e traduz a idéia de que as mulheres poderiam assumir o poder e forçar a conclusão de uma paz, abstendo-se das relações sexuais enquanto a guerra durasse . O enredo insiste na sexualidade como atributo feminino de mais alta importância. O tema é da mais transcendente atualidade, indicando mulheres que choram por maridos e filhos, bravos guerreiros, perdidos em guerras burras. Lisístrata principia a peça lamentando que as mulheres demoravam para aparecer na assembléia convocada para discussão de um plano de ação contra a guerra:
“Se fosse para uma bacanal ou coisa parecida nem teria sido necessário convidá-las. Como é para coisa séria, até agora nenhuma mulher apareceu.”
Lisístrata categoricamente prevê ato heróico, com o objetivo de salvar a Grécia da guerra, com o auxílio das demais mulheres:
“Fique certa de que o destino do país está em nossas mãos. Se falharmos a pátria estará perdida, será destruída por tantas lutas fraticidas. Mas se nós, as mulheres, nos unirmos, as mulheres de todos os rincões da Grécia, o país estará salvo.”
E insiste na comicidade e jocosidade que a linguagem da comédia permite:
“O meio é exatamente esse! Se ficarmos em casa, bem pintadas, com vestidos transparentes, deixando ver certos lugares bem depiladinhos, e quando nossos maridos avançarem para nós, taradinhos, loucos para nos agarrar, nós não deixarmos, garanto que eles votarão logo pela paz!”
E continua:
“Em último caso, vocês deixam, mas de má vontade e sem cooperar. Não há prazer nessas coisas quando forçadas. Além disso é preciso fazê-los sofrer. Fique tranqüila, eles entregarão logo os pontos pois o homem sem mulher não tem prazer em nada.”
Discutindo com um comissário, Lisístrata identifica a agressiva maneira como as mulheres eram tratadas, privadas de voz, de opinião:
“Falo mesmo. No princípio da guerra nós, com a moderação própria das mulheres, suportamos tudo de vocês, homens (como vocês fizeram tolices!), pois vocês não nos deixavam abrir a boca. E vocês não faziam coisa alguma para nos agradar. Nós que conhecíamos vocês muito bem, quando às vezes ficávamos sabendo de resoluções desastradas sobre assuntos importantíssimos, perguntávamos a nossos maridos: ‘Que foi que decidiram na assembléia hoje a respeito da paz?’, ‘Que é que você tem com isso?’ dizia meu marido; ‘Cale-se!’ E eu me calava”.
A estratégia de Lisístrata e de suas companheiras fora bem sucedida. Os maridos renunciaram à guerra e voltaram aos lares. Ao meio de efusões gerais, danças, cantos, um político anuncia a paz:
“Espartanos, agarrem suas mulheres! Atenienses, segurem as suas! Isso! Os maridos perto das mulheres, as mulheres grudadas nos maridos. Depois de festejar esse fim feliz com danças em honra dos deuses, tratemos de evitar no futuro os mesmos erros que nos deixaram por tanto tempo sem... paz!”
As entrelinhas da peça permitem que o leitor moderno identifique a mulher no cenário helênico. A medida encabeçada por Lisístrata, extrema, comprova posição submissa. À mulher seria vedado o direito de opinião, reservado aos homens da cidade. Como adverte Claude Mossé, o termo “cidadã” deve ser usado com prudência: identifica apenas a mãe, mulher, filha, irmão do cidadão ateniense e nada mais . Não há como falarmos da mulher ateniense usufruindo direitos reservados aos homens. Nesse sentido, segundo Michael Grant, a comédia de Aristófanes é peça de protesto . Ainda segundo o mesmo estudioso:
“Na vida pública elas [as mulheres] não desempenhavam nenhum papel. (...) Nas cidades-estado em geral as mulheres nunca detiveram cidadania, nunca ocuparam postos, e não participaram abertamente de atividades políticas, como em todas as outras civilizações, desde o início dos tempos. Privadas de controlar até seus negócios e interesses pessoais, as mulheres gregas estavam, juridicamente falando, sob a tutela do homem, e não gozavam do direito de obter ou dispor de propriedade.”
O comportamento grego destoa de modernas tendências de eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, esforço que mais obstáculos encontra para implementar direitos humanos em igualdade de condições . Simplesmente, a mulher grega era discriminada. O universo feminino ático pode também ser descortinado em Antígona, conhecida peça de Sófocles, apropriada pelos saberes jurídicos, para efeitos de exemplificação de direito natural. Sófocles nascera em Colonos, perto de Atenas. Vivera em Atenas na época de Péricles, no século V a.C., momento de riqueza e de esplendor. Orienta suas obras em torno do eixo temático de Édipo, o herói que matara o pai e casara-se com a própria mãe. Antígona era a filha incestuosa de Édipo, nascida do ventre da infeliz Jocasta. Paul Harvey, em obra de referência de literatura clássica resume a poesia dramática de Antígona: “Creôn, rei de Tebas, havia proibido sob pena de morte para os desobedientes o sepultamento do cadáver de Polineices. Antígona resolve desafiar o edito ultrajante e realiza os ritos fúnebres do irmão. Surpreendida nesse ato, ela é levada à presença do rei enfurecido. Antígona justifica seu procedimento como sendo ditado pelas leis soberanas do deuses. Creôn, irredutível, condena-a a ser seputada viva em uma caverna subterrânea.”
Antígona desafiou a concepção positivista de norma, invocando regras transcendentais como justificativa para sua atitude de desafio. Sua ação deve ser avaliada num contexto, onde à mulher não era deferido o uso da lei, pelo que desprovida de direitos, num ambiente de poder masculino, mundo de homens, conforme observou H.D.F. Kitto,
“É inevitável que Antígona deveria desaparecer, mas não é inevitável que tão pouco deveria ser dito sobre sua saída (...).”
Ismênia, irmã de Antígona, realisticamente adverte a heroína de que a condição feminina as diminui:
“Convém não esquecer ainda que somos mulheres, e, como tais, não podemos lutar contra homens; e, também, que estamos submetidas a outros, mais poderosos, e que nos é forçoso obedecer a suas ordens, por muito dolorosas que nos sejam.”
O Coro, que expressa a opinião pública, admite desigualdades, que em nada diminuiriam o gênero humano. Nesse sentido, utiliza-se a palavra “homem” como designativa de humanidade, em impressionante passo antropocêntrico: “Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior é o homem!”
Os textos de filosofia do direito em geral tomam o partido de Antígona, na luta da heroína contra o aparente radicalismo do rei Creonte. Porém um dos irmãos de Antígona fora privado de sepultura porque traíra a cidade, lutando ao lado inimigo. Justifica-se Creonte: “Não é justo dar ao homem de bem, tratamento igual ao do criminoso”.
Creonte insiste na aplicação da lei. Antígona representa comportamento desviante, merecedor de punição:
“Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecerá meus encômios.”
E decreta a pena: “Levá-la-ei a um sítio deserto; e ali será encerrada, viva, em um túmulo subterrâneo, revestido de pedra, tendo diante de si o alimento suficiente para que a cidade não seja maculada pelo sacrilégio.”
Antígona sente também penalidades indiretas que a privam de existência plena de mulher: “E agora sou arrastada, virgem ainda, para morrer, sem que houvesse sentido os prazeres do amor e os da maternidade. (...) Deuses imortais, a qual de vossas leis eu devo obedecer?”
O artigo propõe outra leitura de Antígona. Ao indicar mulher desafiadora das leis da cidade, Sófocles imputa ao sexo feminino comportamento inadequado. Leitura contemporânea queda-se enamorada da fragilidade da heroína. Leitura pretérita percebe leis que são desafiadas pela protagonista da tragédia. Enquanto leitores discutem se leis devem ser cumpridas sem crítica (tema afeto ao positivismo normativista da tradição kelseniana), apoiando Antígona em detrimento de Creonte, optando pelo direito natural, esquece-se a tradição que um dos irmãos da heroína traíra a cidade. A condição da mulher na Grécia clássica é resumida por um grego contemporâneo: “Na antiga sociedade grega as mulheres eram privadas de direitos civis e não eram autorizadas a implementar nenhum transação, em nome próprio, elas não podiam nem possuir, nem comprar ou vender propriedade.”
A família era comandada pelo homem. Como observou Maurice Croiset, “sua constituição fundamental repousava no poder paterno” . O direito ateniense velava pela pureza das relações, vedando aproximações maritais com mulheres estrangeiras: “Se alguém desse uma mulher estrangeira em casamento para um cidadão homem como se a mulher fosse de sua família, perderia os direitos de cidadania, sua propriedade seria confiscada e um terço de seus bens seriam entregues ao delator.”
Virgindade e fidelidade eram exigidas das mulheres: “A sociedade ateniense também considerou a preservação da virgindade como pré-condição para casamento com honra, com muita severidade, e inseriu grande peso à fidelidade sexual das mulheres, além da legitimidade dos filhos.”
Mas havia também a mulher do povo, a habitar os submundos da antigüidade,
“Imaginem um cenário de teatro, o de uma tragédia clássica ou de uma ópera: coluna, um templo, o esboço de construções reais. No primeiro plano, evoluem generais, oradores, reis ou rainhas (...) Todavia, de tempos em tempos, no fundo da cena, abre-se uma porta, uma armação é afastada, e, no espaço de um instante, é um espetáculo bem diferente que se revela ao público: não mais palácios, porém choupanas em ruínas; não mais reis ou generais, porém uma população compósita, ao mesmo tempo miserável e perigosa.”
A tradição ocidental quer esquecer que o esplendor do conjunto arquitetônico do Partenon contrastava com o urbanismo medíocre da cidade, onde mulheres humildes sofriam muito mais do que as mulheres que freqüentavam a riqueza e a opulência. Prostitutas havia num bairro chamado cerâmico, onde os amantes de belas moças, dos prazeres fáceis, encontravam satisfação . Atenienses detentores de poder e de cidadania possuíam esposas como guardiães de seus lares e garantidoras de descendência legítima, concubinas para cuidados diários e prostitutas para o prazer . As mulheres caídas na prostituição eram designadas com o termo “pornê”, o que, etimologicamente, significa “vendida” ou “à venda”. Segundo Catherine Salles, a palavra vinculava-se “não à profissão degradante dessas mulheres, mas ao fato de que – sendo em grande maioria escravas – haviam sido vendidas num mercado” . A lógica grega não exigia o ser amado, suscitava apenas o amor, o prazer. O vinho e o peixe não nos amam; apesar disso os usamos com muito prazer . Rígida, efetivamente, a separação entre esposa e prostituta: “Se as esposas desfrutam de certa consideração à medida que põem no mundo os futuros cidadãos, as prostitutas são relegadas, pelos menos teoricamente, à categoria de objetos de prazer, desprovidas de qualquer personalidade.”
Subordinação das mulheres é marca que contempla o passado grego. Fontes literárias indicam os contornos dessa realidade. O mundo grego é pranteado pela tradição ocidental que faz vistas grossas a circunstâncias depreciativas, a exemplo do menoscabo para com mulheres. É que o passado é presa do presente, que apodera-se do pretérito, qual um salto de tigre , na deliciosa imagem de Walter Benjamin . A questão remete-nos ao confronto entre universalismo e relativismo no tempo, exigindo uma hermenêutica que apreenda cronologias distintas. Porém, causa repúdio toda circunstância maculada pela exploração e pela violência.
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